Entrevista à revista Época
12/06/2020
1. Muitas lideranças políticas falam hoje na criação de uma frente ampla para confrontar o governo Bolsonaro. O senhor acha que esse caminho é viável?
No curtíssimo prazo, vejo isso não só como viável, como também desejável. Temos todos um ponto que nos une, que é o combate à pandemia. E temos a defesa da democracia. Todos estamos preocupados com o futuro de nossa democracia. Mas sei que há pontos de divergência também, como a questão econômica. Já passou da hora de pensarmos num plano coordenado entre todas as forças políticas para a criação de emprego, manutenção de empresas, salvação da economia, além da questão fiscal diante de tudo isso. E não vejo nenhuma unidade entre centro e centro-direita, ou centro-esquerda, sobre esses temas, então minha percepção é que, ainda que haja uma convergência, lá na frente vamos nos dividir.
2. Além da pauta econômica, a própria discordância do PT não representa um ponto de inflexão para a criação de uma frente?
O Lula saiu da prisão numa posição muito radical e muito parecida à que o PT tinha nos anos 1980 e 1990. Aquele PT que não admitia alianças, que tinha uma visão sectária. A principal liderança de esquerda agir dessa forma hoje é, sim, um impedimento, ainda que não seja a posição oficial do partido. Todo o restante das lideranças está dialogando, como bem mostrou o debate entre FHC, Ciro Gomes e Marina Silva, na Globonews. Eu dialogo com a Marina e o Ciro e temos muitos pontos em comum. No DEM, Tanto o Davi Alcolumbre quanto o Rodrigo Maia e o ACM Neto, presidente do partido, têm uma abertura muito grande. PSD, Podemos, Rede, a mesma coisa, ainda que haja discordâncias no plano da atividade parlamentar. No caso do PSDB, FHC é o nome mais importante, que mais influencia dentro do partido, apesar de estar afastado da vida partidária. Então uma manifestação dele em direção a uma frente ampla tem um peso muito grande, como o Lula dentro do PT. O que as pessoas precisam assimilar é que distensões pontuais e individuais sempre vai haver. O importante é que elas não atrapalhem a energia de mobilização da sociedade em defesa da democracia.
3. Essa agenda de defesa da democracia contempla também uma agenda para o impeachment de Bolsonaro?
Não vejo isso no curtíssimo prazo, a não ser que haja algum fato novo que realmente desequilibre tudo. Enquanto não tivermos a pandemia pelo menos sob controle, não podemos desfocar disso. E depois vem a crise econômica e social, que será profunda. Agregar a isso uma crise política acompanhada de um processo de impeachment não me agrada pessoalmente e nem à maioria dos políticos com quem tenho conversado, ainda que, em muitos momentos, achemos que a Presidência esteja passando do ponto.
4. O que seria passar do ponto?
Se chegarmos a uma situação dessas em que o Executivo não cumpra uma ordem judicial, do STF. Eu acho que é o único momento em que a hipótese do impeachment vai reunir todas as forças no curto prazo.
5. Se o impeachment, por ora, não está no horizonte, qual seria, na prática, a função de uma frente ampla de defesa da democracia?
No sentido de mobilizar a opinião pública de todos os setores da sociedade, de todas as visões políticas, colocando a democracia como eixo principal de nossa vida política e social, alertando a sociedade civil sobre o risco que estamos vivendo. Eu me lembro da antiga Frente Ampla, ainda na época do golpe, que juntou Jango, Lacerda e Juscelino numa mesa, mas não teve resultado. Ocorre que naquele tempo não havia liberdade, não havia imprensa livre, não havia acesso à opinião pública, nem internet. Hoje, essas lideranças de todos os matizes falando uma língua só têm maior poder de expor ideias e mobilizar a sociedade.
6. O senhor se refere às mobilizações de rua?
Não só. Também se trata de uma conscientização das pessoas, de mostrar que não vamos conviver com risco democrático, que isso não é aceitável. Uma sociedade ativa frustra qualquer plano autoritário. No golpe militar, um enorme contingente foi favorável, e só depois ficaram contra, ao perceberem o que havia realmente acontecido. A Marcha com Deus pela Família foi gigantesca e deu força popular para que os militares fizessem o que fizeram. Hoje, os meios de comunicação inviabilizam investidas nos mesmos moldes.
7. O professor José Murilo de Carvalho falou em mudança na redação do artigo 142 da Constituição como forma de pôr fim a ambiguidades sobre o papel dos militares que possam dar munição a intenções golpistas. Há conversas no Congresso a respeito de alterar o texto?
Não sinto essa discussão acontecendo. Sobretudo com cada senador e deputado em seu estado, conversando por meio de vídeo. Nesses moldes, as reuniões e articulações ficam muito prejudicadas. Mas eu vejo o papel das Forças Armadas muito claro na Constituição, ainda que haja pessoas que interpretem isso como bem querem. Agora, eu tenho conversado com alguns militares que estão extremamente preocupados com a situação. Nós temos um governo que é formado por militares, que é democrático por ter sido eleito pelo voto, mas também militar, e cujas intenções têm sido constantemente questionadas. Colocamos hoje à prova se existe a capacidade de um governo composto de militares conviver com a democracia, o contraditório, Poderes independentes, liberdade de imprensa. Tudo isso está sendo um desgaste muito grande para a classe militar. Porque, no fim, o governo é do Jair Bolsonaro, que é um homem completamente despreparado para ser presidente. Ele não sabe, não tem noção de qual é o papel de um presidente, o que faz com que o governo seja caótico. E as pessoas que estão compondo esse caos são militares, e são eles que estão dando o aval aos erros. Mas tudo parte do completo despreparo de um homem para o cargo de presidente. É isso que temos de repensar. Eu repensaria por meio da discussão do parlamentarismo, e não de uma mudança na Constituição sobre o papel dos militares.
8. Há clima para reavivar essa discussão hoje?
Estamos com outros problemas muito mais urgentes. Mas eu gostaria muito de que, passado este processo, o assunto voltasse à pauta. Quero lembrar que não estou há tantos anos assim na política e já vivi dois impeachments — e estamos quase à beira de outro. Em função dessas crises políticas, o país para, a economia para, o desemprego e as desigualdades disparam. No parlamentarismo, se o premiê é despreparado, ele é substituído. Se o Congresso cria impasse demais para governar, o presidente pode dissolver o Congresso. Então é do interesse de todos que haja consenso.
9. O que tem chamado mais sua atenção nas manifestações mais recentes em curso no Brasil?
Achei a primeira manifestação contra o bolsonarismo importante porque deu a sinalização de que não era só a extrema-direita que tinha capacidade de colocar gente na rua. Esse grupo assustou, e isso acabou gerando recuo do governo. Tanto que, no domingo passado, o presidente já não foi cumprimentar manifestantes porque corria o risco de encontrar gente contra na rua. Por outro lado, também me impressionou a primeira manifestação depois do vídeo da reunião ministerial. No vídeo, aquela frase que ele diz sobre armar a população me pareceu assustadora. Quando as pessoas foram às ruas, em seguida, em Brasília, vi todos aqueles carros indo em direção ao Supremo. E pensei: “Imagina essa turma indo em direção ao Supremo armada?”. Para mim, foi uma das coisas mais graves que aconteceram. Quem já leu qualquer livro sobre o nascimento do fascismo invariavelmente se assusta com aquela visão.