Relator da reforma da Previdência no Senado, Jereissati (PSDB-CE) afirma que colaboração do governo para aprovação foi “quase zero” e que as declarações desastradas de Jair Bolsonaro o impedem de capitalizar o que há de positivo em seu mandato.
1. Qual foi o papel do governo na aprovação da reforma da Previdência no Senado? Quase zero. Perto de zero. Mas, por outro lado, tivemos um apoio muito grande, nem sempre concordando, mas sempre à disposição, da equipe técnica do Rogério Marinho ( secretário especial de Previdência e Trabalho ). Na articulação política, eu diria que o grande articulador foi o próprio Fernando Bezerra — e nós. Também a Simone Tebet e o Eduardo Braga ( os três são senadores pelo MDB ). Eu diria que a Casa andou só.
2. O que o senhor acha que poderia ter sido mais fácil se o ministro Paulo Guedes tivesse participado mais ativamente do processo? O governo não tem uma vocação de articulação política. Pelo contrário. Eles mesmos são completamente desarticulados. Estamos vendo tudo que está acontecendo com o partido do presidente. Tanto ele como alguns secretários têm dado declarações desastrosas. O que está acontecendo hoje é que tanto a Câmara quanto o Senado passaram a ter vida própria. O ministro Paulo Guedes faz a agenda e dá um rumo. Mas é o Congresso que está fazendo as coisas acontecerem. Do ponto de vista de aproximação e articulação, o governo é muito distante.
3. O senhor poderia citar algum exemplo de problema que tenha sido causado por essa falta de articulação? Na PEC ( proposta de emenda à Constituição ) paralela, eu tenho tido diálogo com o ministro Paulo Guedes, que incentiva na questão de rever a isenção das entidades que não têm fins lucrativos, ou seja, a isenção da contribuição previdenciária patronal dessas instituições. E o ministro Onyx ( Lorenzoni ), por exemplo, trabalha contra e dá declarações contra. Isso é ruim e atrapalha. Mas é uma experiência nova, no sentido de que a gente simplesmente ignora o governo, escolhe um interlocutor e vai adiante, esquecendo até as declarações contra.
4. Quando a reforma passou na Câmara, o senhor afirmou que, independentemente do trabalho do Congresso, os louros da conquista recairiam, principalmente, sobre o governo. Ainda pensa assim? Eu mudei de opinião relativamente, não totalmente. Tudo aquilo que é um avanço e vai ter consequências positivas para o país é positivo do ponto de vista de avaliação do governo. Paralelamente, como o governo tem feito tantas outras bobagens, essas coisas positivas acabam sendo relativizadas ou até mesmo esquecidas. Acho que, nestes dois últimos anos, votamos algumas coisas importantíssimas, fundamentais e que mudam a perspectiva do Brasil no médio prazo. Elas criam condições melhores para o investimento e para o crescimento. Mas são sempre abafadas pelas brigas e pelas baixarias internas do partido do presidente, o PSL. Em vez de aproveitar esse bom momento, mesmo que não tenha feito a articulação política, o governo está simplesmente criando más notícias para si mesmo. Não sei como vai ficar essa balança se o governo continuar assim nos próximos anos.
5. A reforma ficou aquém do que o senhor gostaria? Hoje eu diria o seguinte: não ficou tanto aquém. Foi o melhor dentro do que permite o sistema democrático. Com toda a experiência que tenho na política e no Senado, raramente vi momentos em que uma reforma delicadíssima e dificílima tenha sido construída com todos os partidos, mesmo os que tinham sentimento contrário à proposta. É difícil, em qualquer parte do mundo, uma reforma da Previdência ser construída com tantos acordos entre nós, os relatores, e os outros partidos. O clima final dentro do Senado, e aconteceu na Câmara também, é muito positivo. Todas as correntes, de uma maneira ou de outra, não digo que se sentiram completamente gratificadas, mas se sentiram com uma participação grande no projeto. Esse, na verdade, é o lado positivo de o governo não ter se metido tanto. Porque é uma coisa realmente construída dentro do debate e da disputa democrática, no bom sentido. Houve um clima de verdadeiro diálogo. De todos, do PT ao PSL.
6. O Senado teve um alto índice de renovação, com a entrada de parlamentares que jamais ocuparam cargo político e têm preferido o diálogo com as redes sociais ao com os colegas. No caso deles, o diálogo também funcionou? Acho que foi educativo para todos. No Senado, o PSL tem uma participação pequena. Mas também acho que conseguimos uma coisa importante, que foi desradicalizar o clima dentro do Senado em cima dessa discussão. Aquele clima de um lado amaldiçoando o outro, de brigas e radicalização esquerda e direita. Hoje se construiu um momento completamente diferente. Espero que continue assim e que se consolide o clima de debate, mas com extrema tolerância para as posições opostas. Isso, acho, é uma grande vitória democrática e pedagógica.
7. Qual é sua perspectiva para os próximos passos de tramitação da PEC paralela, que deverá incluir pontos que ficaram de fora da reforma, como é o caso dos estados e municípios? O relatório já foi lido na CCJ ( Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania ). Na semana que vem, ( o texto ) será acordado com todas as lideranças — esse é o clima no Senado hoje — e, evidentemente, dependendo das circunstâncias, poderá mudar. Dentro de 15 dias vamos para discussões e sugestões de emendas. Provavelmente, em 6 de novembro, já votaremos o relatório final com as emendas. Existe também um acordo, que estamos montando, para que, no mesmo dia, seja votado em plenário.
8. O senhor acha possível que a reforma se estenda a estados e municípios sem a articulação do governo com os governadores? Acho que nossa experiência até agora é que, se não fizermos isso, o governo não vai fazer. Então, já estamos nos acostumando a tomar essa iniciativa. Isso está acontecendo por meio dos senadores e seus governadores. Acredito que vamos ter sucesso. Na Câmara, a interlocução foi feita muito mais pelo presidente Rodrigo Maia. Esse modelo de diálogo com os estados tem sido eficiente até agora. Agora, é fundamental que isso entre, porque significa uma economia de mais R$ 350 bilhões. Esse número por si só já supera a expectativa do governo.
9. O senhor acrescentou ao relatório da PEC paralela a criação do Benefício Universal Infantil. Trata-se de uma forma de compensação social por possíveis perdas que possam advir da reforma? O que acontece é o seguinte. Observamos, na discussão da própria reforma da Previdência, que já existem muitos programas para idosos, deficientes, alguns programas para desempregados, para adolescentes com problemas de desenvolvimento, mas não existe nada focado na criança. E é a partir dela que vamos evitar a formação de problemas lá na frente. É onde há a construção de um país mais preparado. Não é uma ideia minha. Esse projeto nasceu na Câmara com o que chamo de projeto Tabata-Rigoni ( dos deputados Tabata Amaral e Felipe Rigoni ), mas, por alguma razão, não passou. No Senado, temos muitos especialistas debruçados nisso. Nós chamamos de Benefício Universal na Infância. É universal, mas extremamente focado nas crianças pobres do país e, principalmente, nas crianças até 5 anos. O grande consenso na formação da vida de uma pessoa é que esses anos — dos 5 aos 12 anos — são fundamentais até para a facilidade de absorção de conhecimento. A meta do projeto, se aprovado, é a redução da pobreza na infância e da vulnerabilidade em até 30%.
10. Outro ponto acrescido à PEC é a questão do fim da isenção de contribuição patronal das entidades filantrópicas. Em quais casos essa desoneração deverá ser retirada? Instituições ligadas a igrejas, que sejam gratuitas, que tenham essa característica filantrópica de doação de serviço e assistência social, não entrariam nessa discussão, da possibilidade de algum tipo de obrigação de fazer a contribuição patronal. Um outro ramo é o de organizações sérias que prestam grande serviço ao país, no desenvolvimento de pesquisa, estudos etc., mas que, como organizações, cobram caro. Há vários exemplos de universidades, colégios, e aí existe uma discussão sobre se é justo ou não que uma instituição séria, bem-intencionada e de excelência não faça a contribuição patronal de seus funcionários e deixe um buraco na Previdência. Se eles não pagam, alguém vai pagar por eles. E esse buraco nós estamos pagando hoje. Agora, há também as falsas filantrópicas. Elas se dizem filantrópicas, mas, por trás, existe uma mantenedora cujo dono tem carro de luxo e avião. Isso não é fiscalizado corretamente pelo governo.
Fonte: Revista Época, Edição 1.111, https://epoca.globo.com/brasil/dez-perguntas-para-tasso-jereissati-24040885